“Quinze lugares cancelados em dois dias, a necessidade de fazer reserva em quatro restaurantes para escolher um e deixar o resto na mão…” Foi por meio de postagem em uma rede social, com tom de desabafo, que o chef Raphael Vieira trouxe à tona uma prática cada vez mais recorrente que aflige restaurantes mundo afora: o chamado “no show”.
Trata-se do termo em inglês para o bom e velho “cano”, onde o cliente não comparece para a reserva feita por ele antecipadamente, não notifica o estabelecimento ou, pior, faz reservas em diferentes restaurantes para, apenas na hora, decidir em qual vai jantar.
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“Toda uma cadeia é usada para o preparo do prato chegar à mesa do cliente, e essa cadeia sofre um impacto no momento em que esse cliente cancela a reserva”, diz Vieira, ao comentar sua postagem, que havia sido feita dias antes. Ele é proprietário do 31 Restaurante, pequeno endereço na região da República, em São Paulo, que privilegia receitas veganas e vegetarianas servidas na forma de menu-degustação.
Chef Raphael Vieira, do pequeno 31Restaurante, que recentemente desabafou nas redes sociais sobre os constantes casos de ‘no show’ na casa / Gabriela Queiro
A prática não assola apenas casas pequenas, como a dele, mas também negócios de maior porte, como o badalado Moma – Modern Mamma Osteria, com concorridas unidades em Pinheiros e no Itaim Bibi. Afinal, as casas acabam por perder uma preciosa fonte de receita no período pós-pandemia, em que ainda se recuperam dos abalos financeiros causados pelo período.
Paulo Barros, que comanda o Moma ao lado do chef italiano Salvatore Loi, recentemente começou a fazer um teste, apenas em uma das unidades – reserva apenas 30% das mesas. “Há clientes que se organizam para chegar cedo com a reserva e já sentar. Por isso estamos testando dessa forma”.
Mas segundo ele, quando o restaurante era adepto da prática de uma forma mais intensiva, era comum inclusive o “desconforto” entre os clientes. “Algumas reservas não apareciam e tínhamos que segurar a mesa vazia por mais 15 minutos, que é o período de tolerância, enquanto outros clientes ficavam aguardando um lugar para sentar.”
Rubens Salfer, chef executivo do Grupo D.O.M., conta que o sofrimento com o “no show” também é algo sentido no renomado D.O.M, detentor de duas estrelas no prestigiado Guia Michelin e na lista dos melhores restaurantes da América Latina por The World 50 Best Restaurants, e no Dalva e Dito, casa de comida afetiva brasileira mais descontraída do grupo.
Ambiente do Dalva e Dito, nos Jardins / Ricardo Dangelo
No D.O.M. são apenas 53 lugares, que na hora do jantar só oferece menu-degustação e apenas com reservas.
“Uma mesa de cinco pessoas que não comparece representa 10% do faturamento da noite, sendo que tivemos uma preocupação e gasto com insumos, itens extras para o caso de alguém da mesa precisar de uma substituição em algum dos pratos, equipe a postos. A lista de preparos e afazeres antes de abrir as portas do restaurante e o cliente sentar é grande e, claro, tem um valor” diz o chef, que ainda completa que no D.O.M quando uma mesa não aparece, dificilmente conseguem colocar outros comensais no lugar, pois já é um estabelecimento conhecido na cidade por só funcionar mediante reservas.
No Dalva e Dito que tem mais que o dobro de lugares, 110 no salão principal, o problema é ainda pior. Por ser famoso por conseguir atender grandes grupos, os clientes reservam mesonas, às vezes com mais de dez lugares, e a casa se prepara para atender com perfeição, muitas vezes até com reforço de staff, para simplesmente os comensais não aparecerem.
Luiz Felipe, proprietário e chef à frente do Evvai, também estrelado e na lista dos melhores restaurantes da América Latina por The World 50 Best Restaurants sofre do mesmo problema e diz que pensa constantemente em mudar o sistema de reservas para pagamento do jantar antecipado.
Com apenas 51 lugares, a casa cobra uma taxa de reserva que é descontada na hora da conta, mas Luiz diz que quando é debitada essa taxa dos clientes que não compareceram, normalmente, eles não autorizam o gasto com o cartão de crédito e o prejuízo fica realmente 100% para o restaurante.
Estratégias para evitar perdas
Chef André Mifano, à frente do Donna / Divulgação
André Mifano, chef e proprietário do Donna, por sua vez, preferiu recorrer a uma solução que tem se tornado comum em outros países: cobrar uma taxa de reserva, que posteriormente é descontada do valor final da conta, mesmo sobre protesto e reclamações de alguns comensais.
“Para um restaurante como o meu, com 28 lugares, uma ou duas mesas que não aparecem podem representar até 20% do faturamento do dia”, argumenta.
Raphael compara a ida a um restaurante com uma peça de teatro: “Quando você vai ao teatro, é necessário que se compre ingressos antecipadamente. Isso porque existe um custo para os ensaios e num restaurante não é diferente: nós entramos antes da casa abrir, preparamos tudo de acordo com as reservas e isso gera custo que é desperdiçado quando acontece o ‘no show’”, discorre.
Ele ainda vai mais fundo: “Não é apenas o desperdício financeiro, mas também da terra, fornecedor e combustível fóssil. Toda uma cadeia é impactada no momento que o cliente cancela a reserva”, indigna-se.
Mifano aborda ainda outro aspecto que envolve as reservas nos tempos atuais: o imediatismo. “A pessoa sai hoje para jantar e parece que precisa voltar correndo para apagar um incêndio em casa. Ela chega, come e se levanta. Não se curte o jantar, parece que a ideia é bater cartão”.
Segundo ele, na década de 80, não era comum chegar a um restaurante e logo se sentar à mesa.
“Naquela época, tinha o ritual de parar no bar da espera e tomar um drinque enquanto a mesa era preparada. Tem se perdido muito dessa experiência de sair para comer, que é mais do que fazer uma foto para postar no Instagram. Sair para comer precisa voltar a ser um programa relaxante e prazeroso”, se queixa. “Quando a pessoa não aparece, toda a compra de insumos, o pré-preparo, a organização da cozinha é desperdiçada. Tudo porque as pessoas não conseguem simplesmente desmarcar o que elas mesmos marcaram”, complementa.
Trata-se de algo que ele procura botar em prática no Donna, no qual é possível aguardar um lugar no diminuto salão enquanto se beberica drinques do bartender Vini Lopes ou beliscar sua afamada porção de pão de queijo frito.
Área de espera do Ama.zo Peruano / Gustavo Ferreira
O mesmo acontece no Ama.zo Peruano, restaurante dos Campos Elíseos que recentemente ganhou uma segunda unidade no Shopping Higienópolis. Na unidade que fica no centro, e que ocupa um casarão histórico projetado por Ramos de Azevedo, aguarda-se por uma mesa em um espaço com bancos e sofás e até um cardápio exclusivo.
“É um espaço super agradável”, diz Leonardo Aponte, gerente da casa. “Chega a ter espera para sentar na espera.”
Leo explica que a casa, que tem capacidade para 160 pessoas, aceita que se agende uma mesa, mas há regras. “Nós abrimos as reservas com, no máximo, duas semanas de antecedência a fim de reduzir o ‘no show’, e com horários pré-determinados.” Também há o limite para grupos de, no máximo, oito pessoas. “Ainda assim, o não comparecimento chega a 25%.”
“Reserva e aparece”
Um demonstrativo de que esse é um problema global foi a criação do movimento “Reserva e Aparece”, que uniu chefs, sommeliers e restaurateurs há pouco mais de um ano em Portugal.
O objetivo era sensibilizar o cliente sobre a importância de desmarcar com antecedência a reserva feita, no caso da não possibilidade de comparecer, sobretudo num momento em que o mundo saía da fase crítica da pandemia e os estabelecimentos voltavam a receber o público após um extenso período de prejuízos decorrentes do lockdown.
“Os planos mudam. Não faz mal. Basta avisar”, dizia a frase nas publicações do movimento, que desacelerou após colher bons resultados. Por aqui, Mifano já ensaia uma campanha similar. “As reservas passaram a ser uma forma de você ter alguma coisa garantida, e aí você decide na hora se quer ou não. Quando isso começa a acontecer, elas deixam de ser uma coisa boa e passam a ser prejudiciais para os negócios”, argumenta.
Essa premissa não vale apenas para restaurantes, mas também para alguns bares da cidade.
“No início, tentamos implementar um sistema de reservas, até para chamar clientela, mas logo de cara não deu certo”, explica Marco Aurélio Sena, que abriu o Tantin em meados de 2022 numa simpática esquina de Pinheiros com cara de botequim. “As pessoas não vêem nosso lado. Há toda uma preparação antecipada”, diz ele, que finaliza: “É como você se arrumar para um encontro especial e a pessoa não ir.”
Verdade seja dita: ninguém gosta de estar pronto e ficar esperando eternamente aquela pessoa especial chegar, não é mesmo?
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